segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Policiais civis réus por extorsão torturaram suspeito de tráfico na presença de criança - Ouça áudios

A Justiça estadual afastou os acusados das funções e determinou ainda que eles terão que usar tornozeleira eletrônica

A troca de mensagens entre inspetores e delegadas da Polícia Civil do Ceará (PC-CE) indica que a extorsão e a tortura de traficantes já eram práticas institucionalizadas por parte deste grupo na Divisão de Combate ao Tráfico de Drogas (DCTD). Os 32 membros de uma suposta organização criminosa viraram réus no último dia 17. Nesta segunda-feira (27), o Ministério Público do Estado (MPCE) divulgou detalhes do caso.
Em áudios extraídos dos aparelhos celulares dos investigados, que foram apreendidos com autorização judicial e constam nos autos da investigação do órgão, escuta-se Francisco Alex de Souza Sales, inspetor da Divisão de Combate ao Tráfico de Drogas (Denarc), pedindo à delegada Anna Nery, da Delegacia da Mulher, a facilitação para um encontro com um informante preso na Delegacia de Icaraí, na Região Metropolitana de Fortaleza.
A mensagem de voz teria sido enviada em 7 de junho de 2017. Segundo o MPCE, o informante foi identificado como José Abdon Gonçalves Filho. Como ele não respondia mais às mensagens, o inspetor queria visitar o local para saber o que estava ocorrendo. Ele frisa, no entanto, que o delegado da unidade não poderia saber o verdadeiro motivo do encontro. 

TORTURA E NEGOCIAÇÕES - Em um dos áudios, a delegada Patrícia Bezerra, em conversa com o inspetor Antônio Chaves Júnior — que à época também trabalhava no local — dá a entender que uma negociação com o traficante preso em flagrante poderia ocorrer no ambiente da DCTD.
Também é possível ouvir que o inspetor Madson Natan Santos da Silva deteve Claudiano da Silva Souza, no bairro Granja Portugal, em Fortaleza. Ele estava em um veículo junto com outras pessoas, inclusive uma criança. Claudiano teria sofrido tortura, e a criança presenciado a agressão. No áudio, é possível ouvi-la chorando.

ATENTADO CONTRA PROMOTORES  - Segundo as investigações, outro áudio mostra sugestões sobre atentados contra patrimônio e autoridades integrantes da Controladoria Geral de Disciplina (CGD) e do MPCE.
O indício consta em mensagem de voz de um grupo batizado de "Irmãos Santos". Nele, Maiko Jason Jerônimo dos Santos, irmão do inspetor Petrônio dos Santos, comenta sobre isso: "Macho, é porque os policiais daqui são frouxo, né? Fosse no Rio de Janeiro, já tinha pelo menos feito alguma coisa na CGD ou dado uns 'tiro' nos carros lá fora, tocado fogo, feito alguma coisa, né? Fosse no Rio de Janeiro não era igual aqui, não. Pegasse um carro duma promotora e desses uns tiro, né?", mostra áudio.
A organização criminosa, conforme o MPCE, utilizava a informação de traficantes rivais para realizar a extorsão. Na ponta, os policiais torturavam, ameaçavam as pessoas e implantavam provas. Do outro lado, de acordo com a denúncia do Gaeco, delegadas facilitavam as práticas de extorsão dos alvos, entre outros crimes como tráfico de drogas, peculato, prevaricação, denunciação caluniosa, falsidade ideológica, falso testemunho, abuso de autoridade e fraude processual.
A Justiça ordenou o afastamento dos acusados das funções públicas e determinou que eles deverão usar tornozeleira eletrônica.

SÃO ACUSADOS

22 inspetores da Polícia Civil

1 escrivão da Polícia Civil

2 delegadas da Polícia Civil

1 ex-inspetor da Polícia Civil do Ceará (atualmente delegado da Polícia Civil do Piauí)

6 civis (informantes e traficantes)

TROCA DE "FAVORES" - Em outro áudio, o inspetor Fábio Benevides pede à mesma delegada uma “gentileza”. Ele queria que Anna Nery o incluísse como testemunha em um inquérito policial acompanhado por ela. A delegada concorda em realizar o procedimento mesmo que o inspetor não tenha presenciado o fato.

FRAUDE PROCESSUAL E DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA - Em 24 de fevereiro de 2017, a delegada Patrícia Bezerra, titular da DCTD, em conversa via Whatsapp com o inspetor Antônio Chaves Júnior, fala que dois celulares não foram apreendidos de forma oficial, a pedido de Antônio Chaves Júnior, durante uma operação de combate ao tráfico de drogas realizada no dia anterior.
Ela fala que os aparelhos teriam ficado de posse de dois inspetores: José Audízio Soares Júnior e Raimundo Nonato Nogueira Júnior.
Os celulares seriam dos traficantes Paulo Henrique Júlio e Jonata Naor Mafra, o “Alemão, presos durante a operação realizada um dia antes. Com os aparelhos em mãos, os inspetores supostamente utilizariam as informações contidas para realizar extorsão de mais traficantes em investigações futuras.
No segundo trecho deste áudio, o então inspetor da Polícia Civil João Filipe de Araújo Sampaio Leite comenta com a delegada Patrícia Bezerra sobre a operação do dia 23 de fevereiro de 2017.
Ele sugere que poderia informar, no inquérito, ter encontrado drogas em um caminhão, ainda que o veículo não tivesse sido vistoriado até aquele momento.

ENTENDA O CASO - Em 2017, uma investigação da Polícia Federal (PF) descortinou um esquema de extorsão e corrupção envolvendo pessoas ligadas à Segurança Pública do Ceará. O caso começou a ser apurado após a delação premiada de um português preso por vender anabolizantes da Europa.
Carlos Miguel de Oliveira Pinheiro esteve em duas ocasiões na DCTD. Em depoimentos, ele relatou ter tido bens subtraídos pelos policiais civis. A partir daí, iniciou-se a operação batizada de “Vereda Sombria”.
O modus operandi identificado foi a extorsão, tortura e ameaça de suspeitos de crime ou que já possuíam mandado judicial em aberto. Os participantes da organização ameaçavam, inclusive, decretar a prisão em flagrante deles para obter informações sobre traficantes maiores e mais quantidade de drogas.
Ao todo, 25 pessoas foram acusadas de envolvimento. No entanto, uma delas morreu assassinada durante as investigações. Em dezembro daquele ano, a PF realizou prisões expediu mandados de condução coercitiva contra três delegados e 13 inspetores da DCTD e da Polícia Civil, entre outras. Destes, 13 já foram condenados. 
Os casos que não eram atribuição da Justiça Federal foram repassados para o âmbito estadual, por meio do Gaeco.
Após dois anos investigando o caso, o MPCE denunciou, no último dia 18 de agosto, 26 policiais civis e outras seis pessoas por participação deste esquema, incluindo os crimes de tortura, tráfico de drogas, corrupção, extorsão, abuso de autoridade, peculato, prevaricação e associação criminosa.
Duas delegadas, que estiveram à frente da DCTD, também são acusadas de participarem da organização.  

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